quinta-feira, janeiro 18, 2007

Litost

«Litost é uma palavra checa intraduzível noutras línguas. A primeira sílaba, que se pronuncia longa e acentuada, faz lembrar o queixume de um cão abandonado. Para o significado da palavra, procuro inutilmente um equivalente noutras línguas, se bem que dificilmente conceba que seja possível compreender a alma humana sem ela.
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Vou dar um exemplo: o estudante tomava banho com sua amiga, também estudante, no rio. A moça era desportista, mas ele, ele nadava muito mal. Não sabia respirar debaixo de água, nadava lentamente, a cabeça nervosamente erguida acima da superfície. A estudante estava perdidamente apaixonada por ele e era de tal forma delicada que nadava quase tão devagar quanto ele. Mas como o horário de banho estava quase a acabar, ela quis dar por um instante livre curso a seu instinto desportivo e dirigiu-se, num crawl rápido, para a margem oposta. O estudante fez um esforço para nadar mais depressa, mas engoliu água. Sentiu-se diminuído, desnudado na sua inferioridade física, e sentiu a litost. Lembrou-se de sua infância doentia, sem exercícios físicos e sem amigos, sob o olhar excessivamente afetuoso da mãe e desesperou de si próprio e da sua vida. Ao regressarem por uma vereda, iam silenciosos. Ferido e humilhado, sentia um irresistível desejo de bater nela. "O que é que te deu?", perguntou ela, e ele censurou-a: ela sabia muito bem que havia corrente perto da outra margem, tinha-a proibido de nadar daquele lado porque se arriscava a afogar-se e deu-lhe uma bofetada. A moça começou a chorar e ele, ao ver as lágrimas sobre o rosto, sentiu-se cheio de compaixão por ela, tomou-a nos braços e sua litost dissipou-se.
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Ou então um outro acontecimento da infância do estudante: os pais obrigaram-no a ter lições de violino. Ele não era muito dotado e o professor interrompia-o com uma voz fria e insuportável, apontando-lhe os erros. Sentia-se humilhado e tinha vontade de chorar. Mas, em vez de tentar tocar melhor e sem erros, enganava-se deliberadamente, a voz do professor ficava ainda mais insuportável e dura, e ele mergulhava cada vez mais na sua litost.
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Então o que é a litost? A litost é um estado tormentoso que nasce do espectáculo de nossa própria miséria repentinamente descoberta.
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Entre os remédios habituais contra nossa própria miséria, há o amor. Porque aquele que é amado de maneira absoluta não pode ser miserável. Todas as fraquezas são resgatadas pelo olhar mágico do amor, em que até a natação desajeitada, com a cabeça erguida acima da superfície da água, se pode tornar encantadora.
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O absoluto do amor é na realidade um desejo de identificação absoluta: é preciso que a mulher que amamos nade tão lentamente quanto nós, é preciso que ela não tenha um passado que só a ela pertença e do qual possua recordações felizes. Mas quando a ilusão da identidade absoluta se quebra (a jovem recorda-se com alegria de seu passado ou então nada depressa), o amor torna-se uma fonte permanente do grande tormento que chamamos litost.
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Quem possui uma experiência profunda da comum imperfeição do homem está relativamente a salvo dos choques da litost. O espetáculo de sua própria miséria torna-se-lhe uma coisa banal e sem interesse. A litost é, portanto, um traço sintomático de inexperiência. É um dos adornos da juventude

Milan Kundera, O Livro do Riso e do Esquecimento

2 comentários:

pedro almeida disse...

Uma excelente companhia:)

Paula disse...

Estou lendo o livro e gostei muito dessa parte. Que coincidência, você postou isso a muitos anos atras no dia do meu aniversario.