domingo, março 11, 2007

Jamo


A morte do jazz enquanto música progressiva e a sua putativa transformação em espectáculo de repertório tem sido uma ideia usada amiúde, entre os que entendem a evolução em música como um interminável quebrar de barreiras harmónicas, melódicas, rítmicas e cromáticas. Deste modo, apenas seria possível progredir musicalmente extremando a complexidade ou a simplicidade dos dois primeiros elementos ou alterando significativamente os vectores que enformam o segundo par. É uma visão redutora, embora não totalmente desprovida de méritos - uma boa regra para analisar as principais mudanças ocorridas na história da música, inadequada para compreender os seus últimos trinta anos de estraçalhamento não-narrativo. Particularmente inútil para entender a situação actual da música improvisada, presa entre avanços tecnológicos que permitam a utilização de forma simples, intuitiva e “orgânica” de instrumentos e mecanismos de produção e manipulação electrónica em tempo real.

Jason Moran, pianista culto e proficiente, tem uma obra atravessada por este problema e ainda não sabe como o resolver. Uma obra feita de remendos, aqui brilhante, ali frustrada com a época que atravessa. Noutras ainda, arrisco dizer, genial. O concerto do passado dia 6 no CCB representou bem essa encruzilhada. Tecnicamente melhor do que nunca e cada mais entrosado com os seus companheiros, Moran ainda foi bastante do que lhe conhecemos e distinguimos: um hermeneuta do gospel pós-Monk de acordo com Byard, Abrams, Hill e Nichols, versado em Schubert, Berg, James P. Johnson e Nino Rota.



No entanto, são agora mais claros os sinais de uma besta que já está em si desde o início – é só voltar a ouvir a notável discografia -, uma personalidade musical insatisfeita com os próprios constrangimentos do que se entende por música, pelo menos fora do circuito conceptual. Não é por acaso a referência à filósofa/artista Adrian Piper: o seu discurso é a base rítmica e tímbrica utilizada em “Artist Ought to Be Writing/Break Down” como forma de ultrapassar os condicionalismos da previsibilidade do que “não se deve fazer” e é sempre feito. Moran volta à ideia em “Ringing My Phone”, aqui utilizando o falar cantarolado informal de uma mulher turca. Ao nos abstrairmos dos sons que lhe dão origem, ficamos espantados pela diferença de resultados desta técnica.



Outras estranhas ocorrências: clusters na interpretação de “Body and Soul/Planet Rock”, uma espécie de gaguez sobre a melodia; “Arizona Landscape”, leitura straight de um belo tema para pianola de saloon; o bizarro – em Moran – cruzamento de Radiohead com The Bad Plus em “He Puts On His Coat and Leaves”, uma melodia harmonicamente simples repetida ininterruptamente, em crescendo e diminuendo.


Nasheet Waits, o baterista, é um espectáculo por si só. Músico de formidáveis recursos, à vontade entre o free e a soul, fã do “contrarritmo” (à falta de melhor palavra para definir “aquela” forma de polirritmia), é o companheiro ideal da visão universalista de Moran. Nem sempre entendo as contribuições de Tarus Mateen, o baixista, não sei se por uma questão de ignorância ou sentido estético. O seu papel não é de simples âncora rítmica - isso seria ultrapassado e desnecessário, dado o autêntico metrónomo que é a mão esquerda de Moran. Contudo, não se discerne a importância do seu papel, nem como solista, nem como segunda voz. Há momentos em que o som algo peculiar do seu baixo é até intrusivo.

Nem tudo resulta, nesta tentativa de abraçar métodos e ideias oriundos de outras artes performativas e conceptuais. Que isso não interessa, também sabemos. Resta-nos esperar que Moran se mantenha focado naquilo que deve explorar enquanto músico (algo a que pareceu dar importância quando falou) e não se deixe vogar por um “pan-estilismo” que pode impressionar, mas, necessariamente, não responde aos seus fantasmas.

A convite do Bodyspace. Foto de João Henriques.

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