terça-feira, fevereiro 20, 2007

Cinema Puro


Uma das mais belas, mais famosas e mais inúteis cenas da história do cinema é a do ataque do avião a Cary Grant no filme "North by Northwest." De certa forma, esta cena pode ser isolada do seu todo e exibida à parte, tal a sua autonomia em relação à história. A mera sucessão de imagens e sons, conjugados de determinada forma, independente do seu contexto, tem o poder estético da mais abstracta das artes: a música.
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Não há praticamente nada além de cinema puro em "Femme Fatale." Neste filme de Brian De Palma, como nos últimos filmes de David Lynch, pouco mais interessa que não seja a própria experiência sensorial provocada pela associação de imagens e sons, muitas vezes despidos de moral ou consequência. Se Lynch é um compositor de música de câmara, ampliando detalhes em cenas intimistas, De Palma é um sinfonista, foca pormenores em planos saturados de informação.
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A história, ou o que resta dela, gira, como a música ravel-hermmanniana de Sakamoto, à volta do corpo formidável de Rebecca (nome de filme de Hitchcock) Romijn. Aliás, as referências ao mestre inglês são abundantes: a duplicidade, as espirais, a obsessão metaforizada pela perseguição, o sonho, o voyeurismo, a queda, os meios que replicam ou amplificam a nossa visão como forma de particularizar determinado momento da acção. De Palma leva este jogo de referências intricado a outro nível através da auto-citação.

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É uma verdade velha como o mundo: o que interessa não é o que se conta, mas como se conta. Neste caso, não interessa sequer se se conta alguma coisa. "Femme Fatale" é uma homenagem à sétima arte em geométrica filigrana visual. Por uma vez, as meninas más merecem uma segunda oportunidade. Abençoado cinema.

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